Eu sou o 4Queijos
Antes de começar a leitura. Todos os números e informações comerciais mencionadas aqui são de conhecimento público, disponíveis a qualquer um na internet. Vale reforçar ainda que o relato não se pretende imparcial, ele vem de uma perspectiva enviesada e incompleta, a minha. Trata-se de um recorte no tempo (2007–2012), resultado do exercício livre de remontar os anos em que trabalhei no Habbo Hotel. Em respeito à privacidade dos colegas, seus nomes e avatares não serão citados. Defini estrutura e alinhei cronologia nas últimas revisões, mas, de resto, mantive o fluxo de memórias como surgiram. Para simplificar, adotei o mesmo nome do site quando me refiro à sua desenvolvedora (também me limitei a falar do Brasil, embora a comunidade inclua Portugal). Finalmente, aproveito para destacar alguns dos principais agentes das conquistas e alegrias desta jornada: os fã-sites e o time de moderação em português. Seria uma grave omissão não reconhecer seus papeis e dedicação.
Introdução
Sem exagero, eu mandava pelo menos uns 30 currículos todo dia. Fazia rondas por trocentos blogs, sites e comunidades do orkut com vagas. Naquela época, fuçar a internet inteira não era só figura de linguagem. Numa tarde grudenta de outubro, chegou a resposta que mudaria tudo ao meu redor.
Revisitar o que houve é um esforço para encarar e descobrir qual é a barreira que forma um nó na garganta quando penso nessa história. Talvez fosse melhor me abrir a um agiota do que me expor em texto público, estou ciente. Este é outro desafio pessoal, e não vou fugir a nenhum deles.
Com aquele e-mail de seleção, veio um teste de habilidades. Depois, uma entrevista. Apareci de camisa branca com mangas dobradas, calça preta de tecido levinho e allstar preto. Na semana seguinte, comecei no meu primeiro emprego.
Do que estamos falando
Então vamos lá, estamos em 2007
No tempo do celular de botão, qualquer adolescente com acesso a internet podia criar seu refúgio digital para conhecer pessoas e conversar, competir, fazer festa. O Habbo Hotel surgiu no ano 2000, mas pousou no Brasil só em 2006. Numa definição técnica, era a junção de rede social com MMO, Massively Multiplayer Online (plataforma para jogar online com centenas de pessoas). Na descrição do Baixaki, portal antigo de downloads, era uma mistura de orkut com The Sims. Pra quem não conhece, o Habbo era site de entretenimento, chat e console de mensagens instantâneas, fórum e oferecia página pessoal e games. Para ingressar, cada um montava um bonequinho-avatar, escolhendo nome, traços físicos e roupas. Feito o perfil, era possível visitar espaços oficiais e de usuários, criar novos, comprar mobília de pixel e conhecer gente de toda parte. Era um mundo virtual que, além da zoeira, dava ao jovem experiências em diversas práticas sociais da forma mais segura possível. Inspirando a criatividade e a autoexpressão, as trocas lá vivenciadas introduziam reflexões sobre identidade e coletivo (abrindo caminho para que fossem elaboradas e consolidadas no mundo real).
Até 2012, fui um dos responsáveis pela versão em português desse universo vivo e pulsante — cuidava do Habbo como produto, garantindo que qualquer contato com ele fosse divertido e atraente, para envolver e engajar os usuários. O grosso do meu trabalho era feito nos bastidores, em planilhas e ferramentas cheias de termos técnicos em letra miúda. Se precisasse navegar pelos ambientes daquele metaverso das cavernas, como qualquer hóspede, eu também tinha de usar um avatar próprio. No meu caso, um personagem chamado 4Queijos, o gerente do Hotel.
Escalada ao sucesso
Surge um império de pixels
Entre 2007 e 2011, a performance internacional do Habbo disparou em quase todos os aspectos, de registros a vendas. Sua versão em português acompanhou a crescente, chegando a superá-la em alguns termos. Reconstruir a fase próspera a partir de seus números, entretanto, seria uma fotografia limitada das lutas em curso. Para expandir a paisagem, ela será vista sob três contextos que moldaram, com pesos em equilíbrio, o caminho que se desenhou a seguir.
1. Sucesso global
Ou você busca o futuro ou você é o futuro
O primeiro grande diferencial do Habbo é seu pioneirismo, responsável por forjar a trilha a uma era de ouro. Quando surgiu na Finlândia, em 2000, apenas 6,5% do mundo estava conectado. Mesmo que o acesso à internet avançasse rápido pela Europa, até que fosse popularizado, abriu-se uma janela para evoluir as primeiras versões do site sem alvoroço. O próprio Hotel era um projeto melhorado, pois, antes dele, seus criadores lançaram um produto similar com menos recursos, Mobiles Disco. Outra vantagem foi focar no adolescente, um público pouco visado. Anos mais tarde, quando a internet bombou, grande parcela dos usuários era jovem… e qual era o produto maduro feito especificamente pra eles?
Em 2008, a partir de computadores de mesa amarelados com conexão discada, as redes sociais já eram preferência geral — hábito de 80% dos brasileiros com internet e 67%, na média internacional. MySpace e Facebook disputavam a liderança, o primeiro vencendo nos EUA e o segundo, no mundo. Em apenas alguns meses, o MySpace seria destronado em casa, mas ainda levaria anos para que o Facebook dominasse o Brasil. Era o auge do orkut, projeto do Google que caiu no gosto nacional e, de tanto sucesso, teve operação transferida pra cá. No geral, havia muito entusiasmo e, mesmo quem não fazia parte do ranking, teve chance de se dar bem, era um oba-oba geral. Porém ainda havia certo vácuo, tanto aqui quanto lá fora, relacionado a opções pensadas para o jovem, ainda que a internet fosse dominada por eles. Foi o momento do Habbo Hotel brilhar. Com anos à frente em desenvolvimento e aprimoramento, ele despontava como o produto mais completo. A começar por sua mecânica única, que não representava concorrência direta com outras redes, às vezes se complementava a elas. A navegação de game, a economia própria, o chat rápido e o visual amigável de pixel art criavam um ambiente exclusivo, atraindo a nova geração — enquanto mantiam adultos longe. Termos próprios, como mobis e bobba, ajudavam a gerar pertencimento. O site então conquistava uma audiência fiel, como mostra a recorrência média daquele 2008: 63% dos usuários visitavam o Habbo todo dia, por 43 minutos. A receita cresceu e saiu do vermelho, batendo 74 milhões de dólares (em vendas e anúncios). Começava a subida.
Não havia, no mundo virtual, maior autoridade em juventude. Além de ter em mãos hábitos e preferências de jovens que interagiam na plataforma, ela aprofundava suas análises com a Global Habbo Youth Survey. Desde 2007, a pesquisa dava consistência e refinamento ao perfil de comportamento e consumo dos adolescentes pelo mundo. Em 2009, foram 112.000 respondentes de mais de 30 países, quase o dobro da amostra anterior. Com 132 milhões de registros e 11.8 milhões de usuários únicos mensais, o Habbo então cultivava relevância e reputação fora de sua comunidade, pautando imprensa e mercado. Na sua bolha, em 2010, os números deram novos saltos, com 178 milhões de cadastros e 16,5 milhões de acessos únicos por mês (39% da América Latina). A receita total ficou acima de 83 milhões de dólares.
Para uma melhor compreensão do que todos esses números representam, o mapa abaixo permite uma referência visual da dimensão do Habbo na internet daquele tempo.
2011 mal tinha começado quando o site atingiu 200 milhões de registros globais. Vale observar com atenção que, mesmo com resultados excepcionais, a empresa se movimentava para diversificar atuação e assegurar seu destaque. De carona na exposição das redes sociais, buscou associação e, antecipando cenários, trabalhou para atrair um público mais velho e experimentar o mobile. A água da crise de 2008 começava a bater e exigir flexibilidade para mudanças rápidas. Com um novo CEO vindo dos social games, de repente, o produto que teve anos para se desenvolver e consolidar uma comunidade virou palco de testes ambiciosos. Escola para um modo de trabalho nativamente digital, alguns projetos afetaram simbologia e economia locais. Atingir metas com agilidade parecia se sobrepor aos riscos, com ajustes básicos implementados só após os lançamentos. Esse foi o caso, por exemplo, de Lost Monkey, jogo para celular que premiava o perfil Habbo do vencedor com mobília virtual, uma máquina de bananas. Não demorou para que brasileiros descobrissem uma brecha que multiplicava o brinde e erguessem todo um comércio "irregular" em torno dele. Para desestimular o uso errado do app e acabar com a venda da máquina, o item deixou de ser intercambiável, quem tinha não podia negociá-lo. A decisão tardia gerou um tsunami de reclamações no Twitter — e levou a sugestiva hashtag BananaNoHabbo aos TTs. Outro fato marcante foi o retorno, em versão beta com limitações, do SnowStorm, jogo querido encerrado em 2009. Ainda assistimos, em 2011, ao fim de cânones do site como o Habbo Club, clássico programa de vantagens, e os espaços públicos do navegador, substituídos por quartos comuns.
Mesmo que alterações sucessivas no produto indicassem uma estratégia (confusa) de se preparar para o futuro, não havia como afirmar, naquele momento, que o Habbo estava ameaçado. 2012 nasceu com 278 milhões de cadastros globais. Mas em questão de dias, como castelo de cartas na ventania, tudo desmoronou. Primeiro, 1/4 de seus funcionários foram desligados, inclusive eu. Oito, dos onze escritórios pelo mundo, fecharam. Meses depois, seus principais investidores pularam fora. 60 trabalhadores, dos 130 que restaram, foram demitidos em outubro. O número de usuários únicos/mês caiu para 9 milhões até o fim do primeiro semestre, e para 4 milhões no segundo. O ano encerrou com receita em queda, 30 milhões de dólares.
Conto mais sobre esse tombo daqui a pouco.
2. Circunstâncias nacionais
A melhor temporada para um Hotel se hospedar no Brasil
Desde que desembarcou no país, alguns indicadores já apontavam que o país seria um bom negócio. Além da economia aquecida, ao chegar, o Habbo encontrou um mercado novinho a desbravar. Nossa população com internet aumentava rapidamente, ainda limitada ao acesso via computador pessoal (o que dava margem para o fomento de público e tempo até sua migração para smartphones). No ciberespaço nacional, a ocupação era inversamente proporcional à idade: 65% da população entre 10–24 anos navegava online, índice que não passava de 4% acima de 60 anos. Nossos jovens eram ávidos por compartilhar novidades (70% dos usuários conheceram o Hotel através de amigos) e mais abertos ao comércio eletrônico (uma vez que o consumo é importante marcador social). Havia pouca concorrência, legislação permissiva, boom da classe C. O cenário se tornava ainda mais convidativo com a moeda desvalorizada em relação ao euro, diminuindo riscos e custos de uma operação no Brasil. Em resumo, era só tocar a bola pro gol. O resultado saiu ainda melhor que a encomenda e, em poucos anos, a versão em português iria figurar entre os maiores resultados das filiais.
A crise de 2008, que provocava mudanças no produto, dissolvia o mercado mundial enquanto seu impacto era atenuado no Brasil, entre outras medidas, pelo fortalecimento do consumo interno. Em 2009, nosso Cristo Redentor decolava na capa da The Economist e estimulava a aposta no crescente universo digital. Marcas e agências estavam mais abertas a ações ousadas e veículos de mídia diferentes… como anunciar num hotel virtual. Além de cases pontuais com novos parceiros (revistas PlayStation e Mad, O Boticário, Trakinas, Disney, Sony, MTV e mais), o Habbo em português abrigou grandes iniciativas para interação e engajamento do público com campanhas diversas. Numa ação para uma rede de lanchonetes, por exemplo, nossos usuários montaram um novo sanduíche, depois lançado nacionalmente. Foram 230 mil votos para compor o lanche, como se toda a população de Presidente Prudente, em SP, tivesse participado.
Em 2010, nosso Hotel chegou a 20 milhões de cadastros e atingiu o recorde mundial de pessoas online: 50 mil ao mesmo tempo, marca nunca ultrapassada. 2011 trouxe um dos maiores e mais importantes parceiros. O portal R7 multiplicou a exposição do Habbo e atraiu um dos maiores aumentos já vistos nos registros: crescimento de 42% — de 28 para mais de 40 milhões até o fim do ano.
Um parêntese
Jeitinho brasileiro
Eu estaria sempre entre os primeiros para defender e enaltecer o Habbo, mas havia uma questão que me incomodava. Quando pensava na forma calorosa com a qual os brasileiros nos relacionamos, eu via um ponto fraco do produto como se estivesse sob holofotes: ele era uma via de mão única. Basicamente, os gerentes se comunicavam com os usuários através de artigos na página principal, costurando o storytelling da ação do momento, promovendo competições e resultados. A resposta que recebíamos a esses esforços eram números, métricas de performance da plataforma. Nenhuma palavra era trocada. O cálculo da empresa era simples: dada a impossibilidade do gerente dedicar atenção a todos, não se conversava com ninguém. Era frustrante produzir um site sem ouvir os próprios usuários. Se o Hotel fosse um fórum, é como se apenas o admin pudesse criar tópicos e comentários — e a quantidade de membros fosse seu único feedback. Vale frisar que esse modus operandi visava a proteção de todos, principalmente clientes. A companhia não era um conglomerado de vilões pregando uma gestão fria. Mas se fosse pra concorrer com as redes sociais, eu pensava, não dava pra sacrificar a conexão humana pela padronização da experiência. Nosso povo abraça, cutuca, olha no olho, esculacha, e a nossa comunidade precisava refletir tudo isso.
3. Sintonia de equipe
Desobediência civil via CLT
Se você está construindo uma comunidade, tem que amar o que faz e ser o melhor membro dela. É preciso muito cuidado e paciência para criar um
espaço que outros irão compartilhar, você tem que cultivá-lo, recompensar os melhores colaboradores. É um esforço indiscutivelmente humano com poucos, se é que existem, atalhos técnicos.Matthew Haughey, fundador da comunidade MetaFilter
Mas o receio de que a conversa com poucos levantasse suspeitas não levava em conta que, ironicamente, manter-se longe de todos não proporcionava mais segurança. Para obter o que as empresas mais desejam (a fidelidade do cliente) é preciso percorrer os caminhos que elas mais evitam (autenticidade e vulnerabilidade da marca). Tem que dar a cara a tapa. Sem combinar, toda a gerência do Habbo em português começou uma aproximação da comunidade para melhor compreendê-la. Nenhum de nós imaginava a força do tapa que viria.
Embora decidido a ouvir mais a comunidade, tomei cuidado para que isso não saísse do controle. Apenas quando sobrava um tempinho, eu explorava o navegador do Hotel. Conversava com quem aparecesse, sem jamais adicionar qualquer um como amigo. Fui acessível, falei de muita coisa, sem nunca comprometer a empresa ou a mim. Acabei visitando cada vez mais, muitas vezes só pra deixar meu avatar online. Falei muita bobagem, contei piadas ruins e errei, errei muito, inúmeras vezes. Mas fui aprendendo. Procurei cultivar o respeito ao cargo ainda que falasse aos Habbos como igual. O 4Queijos não foi menos gerente do que deveria — foi o mais usuário de todos.
Não fui o único a enxergar valor na conversa com a comunidade. O papo com usuários virou prática no time, o "cafezinho da tarde" de quem trabalhava naquela sala fria da Rua Purpurina. Independente da função no escritório, todos da staff se jogavam em passeios eventuais ao Hotel, como um treinamento imersivo mesmo. Embora não tivesse noção na época, vejo que a naturalidade com que a equipe lidou com esses momentos me fez sentir mais estimulado e confiante. Esse era mesmo o jeito do brasileiro. No fim, o que fazíamos era bater perna e fofocar. Tem coisa melhor?
As trocas com usuários despertavam novas ideias para competições e eventos, além de apontar bugs e erros de digitação. Fomos nos ajustando à comunidade. Um dos pedidos mais constantes que ouvíamos era para democratizarmos nossas atividades. 90% do público era composto de não pagantes, fazia sentido mesmo pensar em mais desafios que não fossem condicionados à compra de mobília virtual. Provas que dependessem de sorte, de criatividade, de dedução. Nesse quesito, fomos pioneiros! Havia a Sabatina com os gerentes, toda segunda-feira, e eventos recorrentes, como Habbo1 e Habbo Rancho. Replicados em outros países, os concursos de foto e vídeo surgiram primeiro em nosso Hotel (e com temas mais divertidos, como dança de salto alto, beatbox ou bate cabelo — sim, isso aconteceu!).
Agora, das atividades que criei, nenhuma me abarrota de orgulho como o Clube da Leitura. Os Habbos tinham um prazo para ler determinado livro, quando eu lançaria um enigma sobre ele. Num labirinto de quartos interligados, charadas relacionadas ao enredo levavam os participantes até uma última sala. Os primeiros a enviar foto de tela do final do trajeto ganhavam prêmios. Preparar tudo isso exigia uma grande operação. Eu passava semanas construindo os mais elaborados desafios, que eram decifrados pelos usuários em minutos, literalmente. Para não ocupar tempo do trabalho no projeto, montava quase tudo de casa mesmo, nos fins de semana. Banquei essa logística durante vários meses apenas por acreditar na ideia, o engajamento gerado era ínfimo (do contrário, a ação incentivava que saíssem da internet e fossem ler). Porém estou certo de que gerava, além da leitura de clássicos, uma experiência especial naqueles que participavam.
Humanos recursos
Quando o agente é a gente
Até aqui, dividi o êxito do Habbo em razão do sucesso global, das circunstâncias nacionais e da sintonia do time. Embora sejam co-dependentes, cada um impactando nos outros dois, apenas os primeiros membros da tríade são, essencialmente, estabelecidos por motivos maiores, forças imprevisíveis e/ou incontroláveis. O terceiro agente é a parte manobrável da estrutura, o único com poder (e responsabilidade) de se ajustar a partir do movimento dos restantes. Pela flexibilidade excepcional de atuação, a equipe demandava o olhar mais estratégico entre os elos da estrutura. Mesmo um desempenho internacional positivo e condições locais favoráveis, sem comando adequado, não garantiriam o proveito de todo o potencial, inovação ou melhoria do produto. Esse lembrete é necessário porque condições e papeis de funcionários nos resultados não costumam ser mapeados. Tais lacunas podem deixar a força de trabalho sujeita a interpretações incompletas, ausência de reconhecimento e tentativas de manipulação.
Tentativa de apagamento
A antiga gerência do Hotel reverbera
Beleza, não é possível medir ou comparar o quanto ter uma equipe mais próxima do usuário impactou (se impactou) nos resultados da empresa. Há, porém, indicadores da dimensão que a gestão pré-2012 influenciou na comunidade.
A primeira pista diz respeito ao uso massivo do nome dos gerentes para aplicar golpes. Veja bem, era esperado que cada Hotel tivesse seus gaiatos tentando se dar bem em cima dos outros, geralmente novos usuários. Aqui havia um exército de malandros, e as táticas mais comuns para tapear envolviam citar os nomes dos staffs como ameaça, garantia ou vantagem. Aí é que tá: para que o recém-chegado ficasse vulnerável ao calote, era preciso fazê-lo conhecer a gerência de antemão. Assim, reputações eram construídas num telefone sem fio infinito, como lendas urbanas inventadas para hóspedes novatos. Nos Hotéis mundo afora, via de regra, as equipes eram parte da experiência de uma pequena fração de jogadores, mais recorrentes e avançados. No Habbo em português, pode ser que o sambarilove nacional tenha ajudado a furar essa bolha — prova disso eram as centenas de "4Queijos" no MSN pedindo senha para as pessoas em troca de moedas. As histórias compartilhadas tiveram reflexos até fora da plataforma, com conteúdos nostálgicos daquela época criados por quem não a viveu. No Google, mesmo representando sabor de comida, o 4Queijos do Habbo aparece entre as primeiras sugestões na busca pelo termo.
Ainda fora do Hotel, o segundo indício da força da ex-gerência vem das redes sociais. Sozinho, o número de seguidores de um perfil não diz muita coisa, entretanto, sob camadas de contextos, ganha significados que devem ser considerados. É o caso da conta do 4Queijos no Twitter: criada em 2009, ficou inativa por anos, mas manteve sua base similar ao que era no fim de sua gestão — 70 mil então, 68 mil agora. Sem anúncio, sem verificado e sem jamais ter visitado o Habbo nesse tempo. Vale reforçar: por-uma-década! Sem o emprego, sem os poderes, sem a exposição que tinha no Hotel. O que manteve tanta gente ligada a um perfil de personagem que não oferecia benefício, notícia ou resposta sobre o jogo do qual veio? Existiria motivo maior a não ser… a profunda conexão que foi criada? Para os seguidores, o Twitter do 4Queijos é uma espécie de memorial dedicado a um tempo de lembranças felizes.
A título de informação, o perfil oficial do Habbo em português, de 2010, com todos os mecanismos disponíveis e muita divulgação na comunidade, tem 99 mil seguidores.
Nenhum vestígio, contudo, atesta mais o poder dos antigos gerentes sobre o produto que o esforço da empresa em expurgar qualquer traço de nossa existência no site. Nossos nomes nas assinaturas de todos os artigos publicados foram substituídos pelo termo vazio “Equipe Habbo”. Títulos e descrições de itens do jogo, com fragmentos de histórias ou nosso tom de voz, foram padronizados em massa para nomes genéricos. Não há espaço à memória ou respeito ao time do passado. A maioria dos meus quartos foi simplesmente apagada e, os poucos que sobraram, trancados. Por fim, o 4Queijos foi removido do buscador de usuários. Não, nada disso é protocolo da companhia, tanto que cada ação desse processo se deu em anos diferentes. Vários gerentes passaram pelo Hotel antes de mim, ou saíram enquanto eu estava no cargo, e nunca nada disso foi feito com a conta deles.
Vendo de longe, é como se o Habbo se esforçasse pelo controle de uma narrativa. A equipe atual parece ter pouca autonomia e poder de decisão sobre a comunidade (não que antes a gente corresse solto…), com limites apertadíssimos para atuação. Há um clima pesado em cada detalhe, uma preocupação que a audiência nunca mais volte a orbitar em torno de um gerente humanizado. A experiência do usuário está asséptica, insossa, previsível. Trabalhar assim deve ser muito triste. Espero que seja um grande mal entendido mas, pelo que vivi na empresa, acho que não é. Gostaria que as pessoas pudessem sentir, pelo tempo que fosse, como era bom chegar da aula e entrar no Hotel para encontrar a turma e se divertir, não apenas competir por emblemas. Rir ao ler os artigos, querer voltar pra saber como termina a história, topar com o gerente por aí.
Encarando o abismo de pixels
Até o melhor emprego do mundo tem sombras
Sob qualquer ângulo, minha passagem pelo Habbo Hotel foi pontuada de preciosas conquistas. Foi mesmo. Pude estar junto e contribuir com seus melhores resultados, aprendi sobre produção digital, desenvolvi e consolidei meu conhecimento em estratégia de conteúdo, convivi com um time talentoso e unido, ajudei a construir uma comunidade gigante, sólida e leal. Por tudo isso, a ficha caiu como uma bigorna do oitavo andar quando notei, pouco tempo atrás, o quanto evito me aprofundar nesse assunto. É paradoxal, já que falo sobre Habbo com certa frequência, porém me protejo num discurso decorado, superficial, salpicado de piadas autodepreciativas. Por quase dez anos, eu me esforcei para não me associar, em registro sério, ao personagem 4Queijos. Sem nunca questionar o motivo. Dei o primeiro passo para trabalhar isso ao dar uma entrevista sobre a época — mas desviei de pontos sensíveis e posso ter sido reativo sobre a ideia de retornar. Depois disso, reativei o Twitter do avatar para manter contato com a comunidade e, após alguns anos, até gravei vídeo pra ela. Este texto é o último dos desafios a que me impus, a maior exposição da minha vida, isso inclui escancarar portas fechadas há muito tempo. E vai ser na bicuda.
Naturalmente, quanto mais horas do dia encarnava o 4Queijos, mais as nossas fronteiras se invadiam. Tentei me proteger criando um personagem que fosse, física e emocionalmente, muito diferente de mim. Ainda assim, por minha responsabilidade, consequência da decisão de me aproximar da comunidade, comecei a sofrer por ele.
Havia duas formas de ser criticado pelos adolescentes. A primeira, 95% dos casos, era o xingamento de gente putaça porque perdeu competição, discordou do resultado ou algo similar. Era birra mesmo, não tinha o que fazer, eu não ligava e até me divertia. O outro tipo de crítica, menos comum e mais cruel, não era nada engraçado, eu não possuía preparo ou defesa. Ao fuçar redes sociais e fóruns em busca de diferentes perspectivas sobre atividades do Hotel, invariavelmente, esbarrava em comentários de ódio contra o 4Queijos, votos do pior pra minha vida, mentiras, preconceito, especulação. Mesmo consciente da pequeneza daqueles depoimentos, encará-los a todo momento foi me deixando na bad. Era pior ainda porque eu não podia me defender, era o adulto ali. Só a ideia de desabafar sobre o assunto me fazia sentir ridículo, nunca cheguei a dividi-lo com amigos ou colegas de trabalho. Quinze anos atrás, não havia debate sobre hate, lacre, cancelamento. Internalizei essa angústia e fui me fechando cada vez mais.
Havia também os stalkers. Dar vida a um avatar anônimo, autoridade num grande jogo, certamente despertaria curiosidade. Quando se é jovem, o misterioso e o proibido tornam-se um desafio irrecusável. Com ajuda da arrogância adolescente, a maior parte dos que buscavam saber minha identidade desistia rápido. Eles acreditavam ter descoberto quem sou ao topar com vídeos de outro funcionário dando entrevista pela firma — muitos ainda pensam que o 4Queijos era ele. Alguns poucos que foram além, contudo, chegaram ao meu nome e me infernizaram. Divulgaram minhas redes, criaram fakes meus, adicionaram meus contatos, fizeram montagens depreciativas com fotos minhas e dos meus amigos. Deletei pelo menos cinco perfis pessoais, apaguei blog, mudei e-mail. Uma vez, uma usuária problemática, chateada por ter sido banida, publicou meus dados em seu site e me acusou de pedofilia. Precisei pedir apoio ao jurídico do trabalho para tirar a lorota do ar.
Era ainda pior quando a perseguição se estendia para a vida real. Perdi a conta de quantas vezes tentaram entrar no escritório. Barrados na portaria, alguns ameaçavam invadir, faziam barraco, entravam escondidos pelo estacionamento, até montavam guarda na frente do prédio. Um sujeito fez o próprio pai bater na nossa porta com uma câmera escondida na mochila. Às vezes eu ficava em estado de alerta, paranoico, desconfiado, com mania de perseguição. Não sei quanto do meu comportamento lacônico na internet vem, de fato, de quem sou e o quanto é fruto dos picos de preocupação.
Aliás, se hoje sou tímido, naquele tempo era quase uma fobia social. Chegava a passar mal se tinha de falar em público, tentava fugir. Isso me prejudicou inúmeras vezes, ainda caio nessa vez ou outra. Eu só queria fazer o meu trabalho sossegado mas, no mundo corporativo, frequentemente, essa parte é o de menos. Você tem que jogar o jogo. Demorei a entender isso e me cobrei demais, agora me vejo com mais compreensão: estava começando a construir meu mundo sozinho, era o primeiro emprego, não sentia confiança no cargo, discordava da forma de trabalhar. Fora as mil tretas pessoais que enfrentava. O fato é que ser introspectivo me tornou alvo fácil de chacota. Fui desrespeitado e exposto em várias ocasiões na empresa. De coração, sem gratiluz, acredito que quem fazia piada pensava que aquilo me ajudaria. Só me deixou mais inseguro enquanto estive naquele lugar. Hoje sei lidar com a timidez e disfarçar o constrangimento, mas definitivamente não é graças aos vexames que passei.
E, claro, teve a demissão. Lembro que o time todo foi chamado pra uma reunião bem cedo. Até eu, que estava de férias. Ninguém falou qual seria o assunto, tava na cara que era zica, mas compareci com mais empolgação que suspeita, não tinha um pingo de experiência. Às 9h30 em ponto, fui mandado embora ao mesmo tempo que muita gente em outros países. O Skype pipocando mensagens em estado de choque, vocês também?, nosso escritório vai encerrar, o que faremos? Sentia tanta tanta coisa que era como se não sentisse nada. Minha cabeça tava a mil, repassando todos aqueles anos em alta velocidade, orgulho e vergonha, vitórias e paranóias, uma comunidade que me acolheu e me odiou. Ao meio-dia, no boteco ao lado, a equipe almoçou pela última vez junta. Pouca fome, pouco papo. Parecia injusto, mas ficaria pior.
Aquelas primeiras demissões de 2012 vieram de uma profunda remodelação do produto. Todas as atividades do site passariam a ser criadas pelos próprios usuários, sem a necessidade de profissionais para dar vida ao produto. A automatização da ferramenta de ajuda atenderia a um grande número de chamados, enxugando também parte do time de moderação. Se clientes e computadores podem trabalhar para a companhia, por que pagar um time pra fazer isso, não é verdade? Até aí, nada de novo, empresa sendo empresa. Porém a vida não é previsível como um conjunto de equações e não há maior cuidado, para um ser humano, que aquele vindo de outro ser humano. Apenas quatro meses depois, o Habbo foi atingido pelo pior pesadelo para quem trabalha com menores de idade: a revelação de aliciadores, predadores sexuais e pedófilos agindo no site. Ao contrário da movimentação que deu fim aos principais ativos da plataforma, as denúncias, apresentadas em documentário da rede Channel 4, tinham sólido embasamento construído em dois meses de investigação. Até então, segurança era um dos principais méritos do Hotel. Um ano após receber o título de Design Mais Seguro pelo Child Exploitation and Online Protection Centre, ele via sua reputação desmoronar e sua moderação ser chamada de ineficaz, permissiva e negligente. E a situação só piorava: novas acusações surgiam, distribuidores rompiam com a empresa, investidores pulavam fora, o público minguava. Por semanas, as falas dos usuários foram silenciadas — era possível navegar nos espaços e usar alguns recursos mas nenhuma palavra digitada era exibida na tela. Não foi fácil acompanhar o desenrolar de tudo à distância. Estava triste pelo site e estarrecido pelos jogadores desprotegidos. O executivo das mudanças rápidas, com quatro meses de companhia quando me desligou, mal esquentou a cadeira. Um semestre depois das denúncias, deixou o cargo — mas, antes de sair, demitiu outras 60 pessoas, de um total de 90, que trabalhavam na matriz.
O Habbo precisou de resiliência para virar essa página, tendo que se provar constantemente para recuperar a confiança perdida. Nos últimos anos, o site mudou de mãos e hoje tenta se mostrar relevante com duas décadas de história. Seus números nunca voltaram aos patamares pré-2012.
Ou seja
Tava aqui pensando
Trilhar esse passado foi como descobrir, camada a camada, uma boneca russa de sentimentos. Entre glórias e sombras, nada me enche mais o peito que gratidão e orgulho por tudo que passei. Arrisquei voar em direção ao sol quando me aproximei da comunidade, e é exatamente o calor dessa aventura aquilo que guardo dela. Poucos tiveram o privilégio de fazer parte de um coletivo tão gigante e engajado. Meu trabalho contribuiu para gerar alta performance e autoconhecimento, à vezes um lugarzinho na memória de quem caminhou junto. Lembrar a preciosidade desse momento, que nunca se repetirá, desenha imediatamente um sorriso na minha cara. Éramos felizes e sabíamos.
Revisitar essa história também trouxe mais empatia com quem fui, mais compaixão com meus erros e entregas. Achei que estava hackeando o sistema ao oferecer diálogo ao público, sem notar que também apagava a fronteira entre pessoal e trabalho. Supervalorizei o anonimato, a opinião alheia, o controle. Quando a tristeza pela demissão se transformou em raiva pelos rumos do site, escondi tudo, trancafiei, fingi. Até agora.
É isso, CNPJs e CPFs foram aquilo que se supõe que sejam. Identificar e localizar o que estava embaixo do tapete foi um passo para, assim espero, fazer as pazes com o passado. Comentários escrotos vão continuar surgindo, ainda serei arrastado ao centro das piadas, mas não sou mais aquele cara indefeso. E continuarei sendo o adulto do rolê.